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29.03.2017

Medida Provisória 759/2016 perde oportunidade de enfrentar situações relevantes de regularização fundiária rural

A recente Medida Provisória n. 759, de 22 de dezembro de 2016, ainda pendente de apreciação pelo Congresso Nacional, veio novamente tentar enfrentar o antigo e grave problema da situação de informalidade do domínio de terras rurais.

Segundo dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR)[1], existem mais de 521 milhões de hectares de terra cadastradas sob a titularidade particular, distribuídas entre 5.766.542 imóveis no país, e mais de 160 milhões de hectares sob a titularidade pública, distribuídas por 9.322 imóveis[2].

Ainda segundo dados do SNCR[3], de 605 milhões de hectares de imóveis rurais cadastrados em todo o país, 464,2 milhões (76,7%) estão sob título de propriedade, 15,3 milhões (2,5%) estão sob posse e propriedade, 46,4 milhões (7,67%) sob posse por simples ocupação, 69,7 milhões (11,5%) por posse a justo título, 576,6 mil (menos de 0,1%) sob posse simples e a justo título.

Esses dados apontam para um alto índice de informalidade da situação fundiária brasileira, na medida em que cerca de um quinto das terras do país não estão sob título de propriedade, sendo que essas posses informais, em grande parte, são exercidas sobre terras públicas, as quais remontam a centenas de milhões de hectares. Estima-se que haja cerca de 40 milhões de hectares de terra pública ainda por regularizar apenas na Amazônia legal[4].

Essa situação gera inúmeras consequências negativas, não só ao próprio possuidor que exerce atividade econômica, muitas vezes com pesados investimentos, sem a certeza de que poderá ter o esperado retorno; como também compõe a causa de prejuízos de ordem social e ambiental, na medida em que a situação informal dificulta a fiscalização, inclusive com prejuízos fiscais para o Estado, pela impossibilidade de cobrança de tributos sobre a terra.

É de interesse público e também particular, portanto, a viabilização da regularização dessas situações fundiárias informais, razão pela qual, desde o século XIX (com o marco da Lei de Terras, de 1850), tem se tentado sanar inúmeras situações fáticas, com sucessivos diplomas legais nesse sentido.

As soluções possíveis para essa regularização passam pelas diferentes situações possíveis, em que cada uma delas demanda um tipo de atuação específica.

A legitimação de posse, por exemplo, é instrumento que, desde a Lei de Terras, já se encontra previsto em nosso ordenamento, sendo destinada a posses com cultura efetiva e morada habitual sobre terras públicas devidamente discriminadas (na forma da Lei n. 6.383/1976, quando se tratar de terras da União). Hoje, o Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964), nos arts. 11, 97 a 102, estabelece o objetivo de progressiva legitimação da posse de terras devolutas federais, o que é, contudo, limitado à área máxima de 100 hectares, entre outros requisitos, pela Lei n. 6.383/1976[5].

Outro instrumento é a regularização de posse, que é realizada mediante ato de reconhecimento que gera preferência para a aquisição onerosa do imóvel rural público. Essa regularização ocorre, no âmbito da União, na forma dos arts. 24 e 25, do Estatuto da Terra, que regula a distribuição de terras adquiridas pelo Poder Público. Também é necessária a cultura efetiva e moradia habitual, além do pagamento do preço, para esse tipo de regularização.

Situação muito comum de posse sobre terras públicas é aquela verificada em terras localizadas na faixa de fronteira, que, em diversos casos, tem seus títulos viciados na origem, quando o descolamento da titularidade pública para a privada deu-se por ente público que não era o legítimo proprietário. Essa situação demanda a ratificação do título, em tema que foi abordado pela Lei n. 13.178/2015 (confira nosso comentário sobre essa lei aqui).

No âmbito da Amazônia Legal (definida pela lei que institui a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia[6]), região que abrange quase 60% do território nacional, a situação caótica da titularidade de imóveis rurais que se encontrava na região (devido à interrupção da regularização desde os anos 1980) levou a edição de lei específica sobre a regularização fundiária, de n. 11.952/2009 (decorrente da apreciação parlamentar da Medida Provisória n. 458/2009), que buscou conceder maior celeridade a essa regularização[7].

Essa lei exige, para formalização do título do possuidor de terra pública, a observância da limitação de uma única área regularizada por pessoa (jurídica ou física), conforme art. 1º, parágrafo único, bem como a incidência específica sobre as áreas relacionadas no seu art. 3º. Em específico com relação às terras rurais[8], a lei também exige cultura efetiva, bem como a ocupação mansa e pacífica anterior (mesmo que por meio de antecessores) a 1º de dezembro de 2004 (art. 5º, III e IV), entre outros requisitos pessoais do pretendente à regularização. A principal limitação está na área que deverá ser de até 15 módulos fiscais[9] e não superior a 1.500 hectares (art. 6º, §1º). Se a área tiver menos de um módulo fiscal, a regularização poderá ser gratuita (art. 11). Já as áreas maiores (até o limite exposto) terão de ser realizadas pela via onerosa.

É nesse ponto que incide uma das principais mudanças da Medida Provisória n. 759/2016, cuja apreciação pelo Congresso Nacional ainda se encontra pendente. A regularização onerosa, se prevalecer o texto da Medida, terá seu custo reduzido: antes, o preço seria definido por avaliação com base no valor mínimo de planilha referencial de preços, conforme regulamento; agora adotou-se um percentual do preço da terra nua da planilha referencial de preços do Incra[10], com valores escalonados de acordo com a área do imóvel, partindo de 10% do valor mínimo da tabela para imóveis de até dois módulos, chegando até 80% daquele valor para imóveis de até 15 módulos (art. 12, §1º).

Esse valor pode ser pago em prestações amortizáveis em até 20 anos, com carência de 3 anos (art. 17), incidindo os mesmos encargos financeiros adotados para o crédito rural oficial, sob as condições resolutivas do art. 15 (com redação atualizada pela MP 759/2016) e cláusula de inalienabilidade, até integral quitação. É sempre possível a quitação à vista com desconto de 20% (art. 17, §2º) e liberação dessas condições, tendo a MP 759/2016 afastado a imprescindibilidade de vistoria para isso (art. 16, da Lei n. 11.952/2009).

Talvez a mais importante alteração que a MP 759/2016 tenta instituir é a transposição do regime de regularização fundiária da Amazônia Legal, resumido aqui em breves linhas, de modo que seja aplicado a todas ocupações nas áreas rurais da União e do Incra, mesmo fora daquela região, com diferencial apenas no escalonamento do preço a ser pago (de 30 a 70% do valor mínimo da planilha referencial) e na exclusão da possibilidade de regularização gratuita (art. 40-A, da Lei n. 11.952/2009).

Contudo, a nosso ver, a Medida Provisória perde a oportunidade de ser mais incisiva na viabilização da regularização fundiária de algumas situações críticas. Por exemplo, aos possuidores de imóveis com área maior que a do limite em questão há somente a alternativa da regularização parcial de até 1.500 hectares, na forma do art. 14., quantitativo esse estabelecido de forma arbitrária, com o objetivo de limitar o poder regulamentador do Incra na definição dos módulos fiscais.

Seria mais técnico e avesso a antinomias jurídicas, porém, que essa limitação de área fosse de 2.500 ha, que é o patamar constitucional máximo para a alienação ou concessão, a qualquer título, de terras públicas sem a necessidade de prévia aprovação do Congresso Nacional (art. 188, §1º, da Constituição). Na forma que atualmente está regida, há um vácuo jurídico para as áreas entre 1.500 e 2.500 hectares, que não poderão ser regularizadas na forma da Lei n. 11.952/2009, apesar de a Constituição autorizar sua alienação e concessão sem qualquer tipo de autorização prévia do Congresso Nacional.

Outra oportunidade que escapa à medida provisória, mas que poderia ser abordada, é a questão da posse irregular sobre terras tradicionalmente ocupadas por índios (na forma do art. 231, da Constituição). Seria oportuno trazer para o nível de lei ordinária a previsão, hoje infralegal, do art. 4º, do Decreto n. 1.775/1996, que possibilita a concessão do direito de reassentamento de ocupantes não índios na área sob demarcação. Trata-se de medida normalmente ignorada pelo Poder Público e que em muito pode contribuir para a solução desse delicado conflito fundiário, um dos maiores desafios do país atualmente.

Por fim, questão importante a ser abordada e que a MP tenta, apenas de forma tangencial levantar, é a questão da titulação das áreas desapropriadas para implantação de assentamentos de reforma agrária. A origem de grande parte de problemas fundiários nessas áreas está no atraso ocasionado pelos longos processos de desapropriação agrária, que muitas vezes impedem, por mais de década, que seja registrada em nome do Incra a titularidade do imóvel, muito embora a imissão na posse e a implantação do assentamento já tenha se consolidado há vários anos. Essa impossibilidade de regularização do título em nome do Incra, obsta a concessão de títulos dominiais aos assentados e, por consequência, impedem a emancipação da reforma agrária, forçando, muitas vezes, os assentados a comercializarem ilicitamente suas parcelas, entre outras mazelas.

A medida provisória poderia pôr fim a esse tema, ao incluir a possibilidade de registro da propriedade antes do trânsito em julgado da ação de desapropriação, vez que esta, em última instância destina-se apenas à discussão da indenização (conforme art. 9º, da Lei Complementar n. 76/1993).

Enfim, apesar das possíveis boas intenções da MP 759/2016, conclui-se que, mesmo se aprovada na forma como está pelo Congresso Nacional, inúmeros outros empecilhos relacionados e de altíssima gravidade ficarão não resolvidos ou permanecerão ignorados pelas políticas públicas. É esse o momento de levar ampla discussão ao Congresso Nacional, com mobilização de todas as partes interessadas, para o fim de enfrentar com seriedade e profundidade os desafios dessa problemática urgente para o país.

 

*Autores: Celso Cestari, procurador federal do Incra aposentado, ex-superintendente regional do Incra e advogado, e Joaquim Basso, professor universitário de Direito, mestre em Direito Agroambiental pela UFMT, especialista em Direito Ambiental pela UCDB, advogado e bacharel em Agronomia.

Notas:

[1] SNCR, dados oriundos de apuração especial de 31/12/2014.

[2] Somente no estado de Mato Grosso, são 155.040 imóveis particulares cadastrados, totalizando uma área de mais de 86 milhões de hectares; ao passo que nesse mesmo estado há 516 imóveis públicos em uma área de 8,8 milhões de hectares.

[3] Em apuração especial realizada em fevereiro de 2012.

[4] Segundo exposição de motivos da Medida Provisória n. 759/2016.

[5] Lei n. 6.383/1976: “Art. 29 – O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse de área contínua até 100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintes requisitos: I – não seja proprietário de imóvel rural; II – comprove a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano”.

[6] Lei Complementar n. 124/2007: “Art. 2º A área de atuação da Sudam abrange os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Pará e do Maranhão na sua porção a oeste do Meridiano 44º”. Esse dispositivo é expressamente aplicável à regularização fundiária, por força do art. 1º, da Lei n. 11.952/2009. Não obstante, o Novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012) trouxe definição um pouco diferente de Amazônia Legal: “Art. 3º. Para os efeitos desta Lei, entende-se por: I – Amazônia Legal: os Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao norte do paralelo 13° S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44° W, do Estado do Maranhão”.

[7] Consoante a Exposição de Motivos da Medida Provisória n. 458/2009, EMI nº 01 – MDA/MP/MCidades, parágrafo 4 e seguintes.

[8] A lei também se destina a regularizar a situação de muitos municípios que se encontram com seus núcleos urbanos até hoje em áreas federais.

[9] O módulo fiscal de cada Município é definido pelo Incra, consoante o tipo de exploração predominante em cada município, a renda obtida no tipo de exploração predominante, outras explorações existentes no Município e o conceito de “propriedade familiar” (art. 4º, do Decreto n. 84.685/1980). A título de exemplo, nos municípios de Sorriso e Sinop/MT, o módulo é de 90 ha, em Marabá/PA é de 70 ha e em Vilhena/RO é de 60 ha (outros municípios podem ser consultados aqui).

[10] A título de exemplo, a planilha referente ao Estado de Mato Grosso, de outubro/2015, coloca esse valor mínimo, no município de Sorriso/MT, como de R$ 4.508,00 por hectare, em Lucas do Rio Verde, esse valor é de R$ 3.920,00 e em Sinop é de R$ 1.764,00 (tabela integral disponível aqui, acesso em 17 mar. 2017).

Artigo publicado no site: Direitoagrario.com