ARTIGOS

15.03.2016

Comentário crítico: Programa de Recuperação de Pastagens Degradadas do Mato Grosso do Sul assegura vantagens fiscais aos produtores rurais

“A notícia refere-se a programa implementado pelo Decreto estadual nº 14.424, de 8 de março de 2016.

Segundo o decreto, a recuperação de pastagens degradadas é definida como a ‘reversão do processo evolutivo de perda da produtividade e da capacidade de recuperação natural para sustentar os níveis de produção e de qualidade exigidos pelos animais, assim como de superar os efeitos nocivos de pragas, doenças e invasoras’ (art. 1º, §1º).

Para a participação do produtor rural no programa, é exigida, além da inscrição em cadastro específico, a indicação de agente técnico regularmente inscrito no CREA/MS, que elaborará o projeto de recuperação, bem como daquele que prestará assistência técnica durante a participação do Programa. Por fim, exige-se a apresentação de projeto de recuperação da área degradada, que deverá ser validado pela Secretaria de Produção e Agricultura Familiar (SEPAF), que exercerá a fiscalização da implementação do programa (art. 2º).

Ainda segundo o Decreto, a recuperação da pastagem poderá ocorrer mediante utilização de pastagem renovada ou com lavoura.

No primeiro caso, será concedido o benefício fiscal de 33,34% do valor do ICMS[1] devido nas operações de saída de produção incremental resultante da utilização da área recuperada (isto é, sobre a produção que exceder aquela que era obtida antes da adesão ao programa). A regulamentação do cálculo dessa produção incremental ainda depende de ato regulamentador complementar, a ser editado conjuntamente pelo Secretário de Estado de Produção e Agricultura Familiar e o de Fazenda. O Decreto é expresso em limitar-se apenas à produção de gado bovino (art. 4º, §1º) e nenhuma outra espécie. Esse incentivo fiscal não pode ser cumulado com aqueles concedidos no Programa de Avanços na Pecuária de Mato Grosso do Sul (Proape) e nem Programa de Desenvolvimento da Produção Agropecuária do estado de MS, que trazem incentivos semelhantes (art. 4º, §4º).

Se a área degradada for recuperada mediante a produção de “produtos agrícolas” (a expressão, utilizada pelo decreto, parece referir-se à produção relacionada à agricultura, à “lavoura”, muito embora não haja consenso no Direito Agrário sobre seu emprego), o mesmo incentivo fiscal será concedido, porém não se fala aqui em “produção incremental”, considerando-se toda a produção proveniente da área degradada como “excedente” sobre o qual incidirá o benefício fiscal. Nessa hipótese, o incentivo também não poderá ser cumulado com o do Programa de Desenvolvimento da Produção Agropecuária do estado de MS, mas pode ser cumulado com os benefícios de ICMS trazidos na Lei estadual n. 2.783/2003 (art. 3º).

O art. 6º prevê a exclusão do beneficiário do programa, caso venha a descumprir quaisquer de suas regras. Os procedimentos para isso deverão ser regulamentados no já mencionado ato conjunto de Secretários da Fazenda e de Produção e Agricultura Familiar (art. 9º).

O Governador limitou a vigência do Programa até o término previsto de seu mandato, em 31 de dezembro de 2020.

Crítica

O programa tem pontos positivos, trazendo um incentivo fiscal que busca a solução de grave problema ambiental, com consequências para a economia, que assola não só o estado de Mato Grosso do Sul, como o Brasil inteiro, qual seja, a proliferação das áreas degradadas. No âmbito federal, esse problema é objeto, por exemplo, da Lei n. 12.805/2013, que instituiu a Política Nacional de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, bem como da Lei n. 13.153/2013, que institui a Política Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca.

A concessão de incentivos fiscais para atividades que recuperam o meio ambiente, ainda que condicionadas ao desenvolvimento de atividades produtivas, podem ser consideradas pagamento por serviços ambientais, que é uma das soluções contemporâneas para problemas ambientais amplamente defendida pela literatura especializada[2].

Todavia, há problemas no Programa, a começar pelo fato de instituir uma renúncia fiscal por meio de decreto, quando a Constituição Federal (art. 150, §6º) e Estadual (art. 147) exigem que isso seja feito mediante lei. Apesar de, aparentemente, essa violação ser prática corriqueira nos sucessivos governos sul-mato-grossenses, é importante apontar a afronta democrática que representa, mormente quando se considera que ato unilateral do Poder Executivo, renuncia receita do governo estadual em benefício de apenas uma classe de produtores. Certamente, a matéria merecia apreciação da Assembleia Legislativa, para o adequado respeito aos princípios democráticos, não obstante os aspectos positivos do Programa já apontados.

Afora esse aspecto formal, é de se criticar que o programa também se restrinja a um único modelo de produção: a de gado bovino (e nenhum outro) e a agricultura de “lavoura” (conforme termos do decreto). Assim, segundo o Programa instituído, se pastagens degradadas forem recuperadas mediante a produção de outro tipo de produção pecuária, de leite, de horticultura, de fruticultura, silvicultura, entre outras atividades, a iniciativa não deverá ser beneficiada pelo incentivo.

Nota-se, desse modo, que o Programa tem um público muito limitado de beneficiados, incentivando apenas um modelo de produção, quando se sabe que é a diversificação na produção agropecuária um dos maiores objetivos da sustentabilidade, desde a Agenda 21[3], e o caminho mais consentâneo com a segurança alimentar[4]. Colocado como um dos objetivos do Programa, o aumento da produção de alimentos (art. 1º, II) não é o foco do programa, caso contrário, teria sido mais abrangente para outros tipos de produção”.

Por Joaquim Basso, Mestre em Direito Agroambiental pela UFMT, especialista em Direito Ambiental pela UCDB, bacharel em Agronomia e Direito, advogado no escritório Cestari & Basso Advocacia, sediado em Campo Grande/MS.

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Notas:

[1] É de se notar que o art. 8º estabelece uma contribuição de dez por cento desse benefício, a ser pago pelo beneficiário, em forma ainda por ser regulamentada, para a operacionalização do programa.

[2] Cf. LAVRATTI, Paula; TEJEIRO, Guillermo [Orgs.]. Direito e mudanças climáticas: Pagamento por Serviços Ambientais, fundamentos e principais aspectos jurídicos. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2013.

[3] UNITED NATIONS CONFERENCE ON ENVIRONMENT & DEVELOPMENT. Agenda 21. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: <http://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/Agenda21.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2016. Item 14.26, letra “a”, da Seção II.

[4] Apontando a necessidade de diversificação, bem como inúmeras práticas que podem alcançar o desejável aumento de produção com sustentabilidade e segurança alimentar, cf. FOLEY, Jonathan A. et al. Solutions for a cultivated planet. Nature, v. 478, p. 337-42, 20 oct. 2011.

Comentário originalmente publicado em Direitoagrario.com.